Na Bienal do livro de 2013, a Maurício de Souza Editora lançou o primeiro volume de uma série de histórias em quadrinhos (HQ) intitulada Chico Bento Moço onde, assim como no selo Turma da Mônica Jovem, vemos o aclamado personagem da editora numa versão juvenil com a arte em estilo mangá. Nessa versão, o protagonista que dá nome ao selo não possui mais a representação da variante caipira que lhe dava característica em sua versão infantil. O agora alfabetizado e vestibulando Francisco Bento opta pela variante mais prestigiada da fala (BAGNO, 2011) e só retorna a utilizar sua variação vernacular em contextos familiares.
Já são longas as discussões a respeito da representação de uma variante menos prestigiada por meio do Chico Bento, enquanto suas revistas na versão infantil eram ainda novidade, mães de todos país acusaram o caipira de ser má influência aos seus filhos por representar a fala de forma “errada”.
Em seu Twitter, o quadrinista Maurício de Sousa relata que durante a ditadura militar, tentaram proibir o Chico Bento de falar “caipirês”. Leitores, principalmente crianças, reagiram e a ameaça foi afastada. Os apoiadores da proibição acreditavam que o Chico Bento era má influência para a fala e a escrita das crianças.
Diversos linguistas se utilizaram disso para explicar a variação linguística e o preconceito linguístico (sociolinguística). Quando tudo que havia para discutir foi discutido, surge uma nova versão do personagem. Agora, um novo debate é colocada em voga, a adequação ao espaço/ambiente. Na análise das falas dos personagens em Chico Bento Moço, será abordada uma discussão sobre adequação de linguagem.
Uma breve ressalva
Ao se referir às falas dos personagens, deve-se ter em mente que em uma história em quadrinhos (em diante hq) não ocorre a oralidade propriamente dita, mas uma representação ortográfica que Sinner (2011, p. 224) denomina oralidade fingida.
Entendemos por oralidade fingida o tipo de oralidade criada por um autor em um romance, relato, história em quadrinhos, etc., por um roteirista em uma obra cinematográfica ou radiofônica, pelo tradutor e dublador de filmes, etc. Não coincide com a língua oral real enquanto não pode ser considerado meramente reflexo da linguagem coloquial, mas evoca contextos orais, selecionando certas características típicas da oralidade ou recursos usados convencionalmente para representar a oralidade na ficção (grifos meus).
Dito isso, deve-se levar em consideração que o que aparece nos balões de fala das personagens, nada mais é do que uma representação ortográfica que busca representar a fala oral de forma aproximada (fingida). Ao fazer um trabalho de análise linguística da fala, é preciso levar em consideração que a fala fingida é aproximada da fala real, o que nos permite fazer uma análise. Feita essa ressalva, vamos continuar com a análise.
No início
Quando o personagem Chico Bento surgiu nas tirinhas de Maurício de Sousa, seu modo de falar intrigou inúmeras pessoas. Como menino nascido na zona rural, Francisco Bento apresenta todas as características de um típico roceiro. Sua fala não é exceção, a variedade-não-padrão comum das zonas rurais do Centro-Oeste, Minas Gerais e São Paulo é incorporada no personagem. Com seu jeito matuto, Chico sempre apresentou os traços caipiras para o Brasil, isso o transformou no ícone que é hoje.
Com a tendência dos traços japoneses no mercado editorial de histórias em quadrinhos ocidentais, a Editora Maurício de Sousa recriou seus personagens infantis, agora adolescentes, num traço artístico semelhante ao de mangá (HQ japonesa). Na bienal foi lançado o selo Chico Bento Moço (agosto de 2013), já que a versão juvenil da Turma da Mônica, também com traços semelhantes ao do mangá, intitulada Turma da Mônica Jovem (agosto de 2008) obteve recorde de vendas.
Então, o personagem Chico Bento passa a ter dezoito anos e, já no primeiro volume, é aprovado no vestibular em engenharia agrônoma. Mas, para a surpresa e revolta de muitos fãs do habitual Chico Bento, esse aparece utilizando a variante de maior prestígio da língua portuguesa brasileira (BAGNO, 2005) e não o habitual “caipirês”.
Entre as discussões e protestos dos leitores, acusações de atos como preconceito e censura foram feitas à editora, mas não há nada demais em se ver o Chico Bento utilizando a variante de maior prestígio do português brasileiro, uma vez que ele foi alfabetizado.
O Chico Bento já rapaz, agora tem domínio sobre duas variações da língua portuguesa brasileira. Uma utilizada pelas pessoas que vivem na região e que já foram escolarizadas urbana (e portanto, mais prestigiada), outra utilizada pelos moradores da região rural que, em geral, não possuíram estudo ou ao menos um nível elevado (por isso, menos prestigiada). Agora, o protagonista pode escolher qual das variantes se adequa mais perfeitamente ao ambiente. Há esse fenômeno dá-se o nome de adequação linguística.
Quando falamos (ou escrevemos), tendemos a nos adequar à situação de uso da língua em que nos encontramos: se é uma situação formal, tentaremos usar linguagem formal; se é uma situação descontraída, uma linguagem descontraída, e assim por diante. Essa nossa tentativa de adequação se baseia naquilo que consideramos ser o grau de aceitabilidade do que estamos dizendo por parte de nosso interlocutor ou interlocutores. (BAGNO, 2011, p. 154).
A partir deste princípio, podemos observar que o Chico Bento (e outras personagens) vão alternar de uma variante para outra dependendo do contexto e, algumas vezes, se confundir em meio a utilização dessas duas variantes. Veja-se no texto 01 como Chico Bento utiliza a variante menos prestigiada, a qual estamos acostumados a ver o Chico Bento clássico utilizando.
Chico Bento Moço, n. 01. p. 8-10, ago. 2013.
Analisando o trecho acima, podemos perceber a diferença de quando o Chico Bento fala com a vaca e quando conversa com sua mãe. Já sua mãe, analfabeta, utiliza de uma variante só. Chico Bento, sendo alfabetizado, mostra por meio desse texto que possui fluência nas duas variantes. Como Marcos Bagno (2011, p. 154) declara, Chico Bento pode “adequar à situação de uso da língua em que se encontra”. Assim, ao achar que a vaca ficará mais tranquila e dará leite ao ouvi-lo falando da forma que ela estava habituada a ouvir (variante menos prestigiada). Com sua mãe, Chico fala da forma que passou a utilizar depois que foi alfabetizado.
Chico Bento Moço, n. 01. p. 15, ago. 2013.
No trecho acima nota-se o caso do protagonista que acaba utilizando de uma variante que não queria utilizar, em virtude do ambiente familiar que “desarmou” sua vigilância quanto ao seu modo de falar. Mais uma vez, a atenção quanto ao uso da variante mais prestigiada foi desfeita e a personagem utilizou da sua variante vernacular, o caipirês, sem ter a pretensão.
Chico Bento Moço, n. 01. p. 58, ago. 2013.
Neste terceiro trecho temos o mesmo fator marcante do segundo trecho, Rosinha, mais uma vez, utiliza o caipirês devido alguma emoção que a deixa desatenta quanto ao uso da variação padrão. Dessa vez, ela mesma se “corrige” e adequa sua conversa à variação padrão novamente.
A partir desses exemplos, percebe-se que o Chico Bento ainda é um caipira, o fato de ele ter aprendido uma nova variante não interfere no que está em seu inconsciente. É o mesmo Chico Bento de sempre.
Agora que está claro que Chico Bento (e Rosinha) é nativo do caipirês, é possível compreender mais dois momentos em que o protagonista aparece com sua namorada e fazem uma troca entre as variações, afinal ambas são variações da língua portuguesa brasileira.
Chico Bento Moço, n. 01. p. 36, ago. 2013.
No trecho acima, é perceptível que Chico Bento utiliza uma “palavra” (no sentido fonológico) que pertence ao caipirês dentro de uma conversação na variante de maior prestígio. Ou seja, é possível misturar as duas variações se o contexto assim permitir.
Tudo se trata de uma questão de contexto, como visto nos segundo e terceiro trechos. Um ambiente familiar não impõe uma regra tão rígida, logo esses ambientes vão possibilitar que se use uma linguagem menos formal, no caso do Chico Bento (segundo trecho) possibilitará que ele fale caipirês. Coisa que jamais aconteceria num contexto mais formal quando ele for à faculdade, estudar agronomia, por exemplo.
Chico Bento Moço, n. 02. p. 35, set. 2013.
Na quinto trecho, percebe-se que Chico Bento deixou escapar uma expressão própria da variante menos prestigiada, o que o tornou motivo de chacota diante dos colegas de república que desconheciam a variação caipirês da personagem. O preconceito linguístico (Bagno, 2011) que foi pouco explorado na versão clássica da personagem, agora é mais trabalhado. A personagem começa a perceber que há níveis de aceitabilidade de sua variante menos prestigiada. Pois a utilização inadequada irá trazer discriminações, como afirma Scherre (2008, p. 43) “Em nome da boa língua pratica-se a injustiça social, muitas vezes humilhando o ser humano por meio da não-aceitação de um de seus bens culturais mais divinos”.
Chico Bento Moço, n. 02. p. 38, set. 2013.
Agora é apresentado claramente a preocupação da personagem de utilizar a variante de maior prestígio na frente de seus colegas, ocultando sua variante menos prestigiada a fim de impedir que isso lhe traga maiores incriminações. Bagno (2009, p. 45) aponta que cada “situação vai exigir do falante um controle, uma atenção e um planejamento maior ou menor do seu comportamento em geral, das suas atitudes e, evidentemente, do seu comportamento verbal”. Com Chico Bento é isso que ocorre, a personagem tem que se adequar verbalmente para evitar ser motivo de chacota, como mostra o quinto trecho.
Chico Bento Moço, n. 02. p. 29, set. 2013.
No último trecho se constata, assim como no terceiro trecho, que as personagens estão com seu monitoramento estilístico (Bagno, 2009, p. 45) baixo, o que faz com que deixem escapar algum elemento próprio da variante de menos prestígio, mas logo se corrigem para evitar um maior constrangimento.
Considerações finais
Embora as HQs do selo Chico Bento Moço sejam algo recente, já se podem fazer inúmeras discussões acima desse material. A capacidade de adequação linguística do caipirês ou da variante mais prestigiada (BAGNO, 2005) de acordo com o ambiente ou a emoção do momento é algo que enriquece ainda mais um personagem tão rico como o Chico Bento.
Mesmo que surjam algumas críticas às mudanças feitas no personagem, não se pode negar que ele ainda permanece com a mesma tendência e com interessantes debates acerca de si. Ainda virão mais HQs desse selo que expandirão ainda mais esse estudo dos casos de adequação de fala das personagens.
E o fim pedagógico que essas histórias em quadrinhos podem ter também não pode ser esquecido. Se as crianças do Brasil aprendessem, por meio do Chico Bento, que existem variações da língua, que é possível aprender diferentes variações e que cada variação se adequa a um determinado contexto, possivelmente eliminaríamos o preconceito linguístico de nosso país.
Referências
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. 3. ed. São Paulo: Parábola, 2009.
BAGNO, Marcos. A Norma Oculta: língua & poder na sociedade brasileira. 4. ed. São Paulo: Parábola, 2005.
BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. 54. ed. São Paulo: Loyola, 2011.
Chico Bento Moço. São Paulo. n. 1, ago. 2013.
Chico Bento Moço. São Paulo. n. 2, set. 2013.
Chico Bento Moço. São Paulo. n. 3, out. 2013.
SCHERRE, Maria Marta Pereira. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito. 2. ed. São Paulo: Parábola, 2008.
SINNER, Carsten. Relaciones sociales en la traducción de la oralidad fingida: formas y fórmulas de tratamiento como dificultad y problema en la traducción. In. ROISS, Silvia; GIL, Carlos Fortea; ARIZA, María Ángeles Recio; LÓPEZ, Belén Santana; GONZÁLEZ, Petra Zimmermann; HOLL, Iris. (Orgs.). En las vertientes de la traducción e interpretación del/al alemán. 1. ed. Berlin: Frank & Timme, 2011.
SOUSA, Maurício de. Twitter. abr. 2013. Disponível em <https://twitter.com/mauriciodesousa/status/323634046842335233> Acesso em: 28 set. 2013.
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