A Ditadura da Opinião
- Carlos Neiva
- 4 de jan. de 2024
- 5 min de leitura

A vida adulta fornece uma série de obrigações e atenções que a vida infanto-juvenil não se preocupava de modo algum. Ser jovem ou ser criança significa ter sempre alguém que cuidará de suas necessidades básicas para você no seu lugar. Sei que parece óbvio, mas por mais que eu também achasse esse fator uma obviedade, pude senti-lo de verdade uma fez, e nesse dia acho que a ficha realmente caiu.
Quem está acostumado a lidar com os problemas de casa talvez já experimentou o desprazer que é limpar uma caixa de gordura. A coisa em si é repugnante, você precisa ficar abaixado, o cheiro é insuportável. Enfim, certa vez tive um problema com minha caixa de gordura e lamentei muito o fato de ter que tornar a limpá-la. Eu morava em uma kitnet, só, e a desgraçada da caixa requeria limpeza vazando um líquido nojento e tomando aquele cubículo de um cheiro podre. A solução era simples, limpá-la. Mas eu não queria, não estava afim, então simplesmente saí de casa para trabalhar e deixei as coisas como estavam. Tempos depois cheguei em casa e me deparei com a caixa ainda entupida e o cheiro de morte na kitnet fechada. Ninguém tinha resolvido meu problema para mim.
Naquele dia eu entendi que se dormisse no sofá, não acordaria na cama. Se eu mesmo não limpasse aquela porcaria, ninguém o faria. Era minha responsabilidade. Naquele dia, eu entendi realmente que estava por conta própria no mundo.
Mas esse não é um texto sobre a vida adulta e suas dificuldades, não, é um texto sobre opinião. É que sendo adulto, percebi que precisava computar a solução de coisas fundamentais. Parte do meu mísero salário de professor deveria ser separado para coisas essenciais, e no resto eu me viraria como pudesse: água, energia, aluguel, gás, comida, internet. Opa! Internet. Na mesma época em que eu descobri que ser adulto é estar por conta própria no mundo, eu descobri que internet é, nos dias de hoje, item tão essencial como água ou luz.
É claro, talvez o leitor diga que é uma besteira, que tornamos a internet uma necessidade e que na época dele não era bem assim. Mas pense comigo, eu sou professor, faço os diários e outras burocracias em casa, pela internet. Também sou estudante, estudo e escrevo pela internet. Não tenho telefone fixo, minha comunicação com a família, amigos e trabalho são pela internet. Eu simplesmente não tenho condições de ficar sem internet, ela me é tão essencial quanto a energia elétrica.
Acontece que na vida as coisas são assim, há coisas que são essenciais e há coisas que não são. Também há coisas que só você pode resolver e há coisas que não cabem a você. E isso, meus caros, tem tudo a ver com opinião.
Há muito tempo atrás, os franceses mataram uma pá de nobres, padres e freiras para exigir liberdade de expressão, liberdade de expressão esta da qual Voltaire se aproveitou bastante. Tempos depois, em um Ocidente pautado nos ideais revolucionários franceses, nós vemos uma série de pessoas com total liberdade para se expressar em meios digitais, como podcasts, vlogs e afins.
São bons tempos, as pessoas não são censuradas e podem dizer tudo que bem entendem, podem até mesmo espalhar calúnias e difamações, podem fazer zombaria com o que bem entenderem, todos estão livres para falar.
Tempo ruim era talvez na Idade Média, da qual os professores de história são livres para falar que qualquer pessoa que expressasse o que pensava era capturada por um grupo de cardeais e torturada até a morte em máquinas horrendas. Nobody expects the Spanish Inquisition!
Mas tempos de vacas gordas podem fazer pessoas acostumadas a fartura. Em um Brasil tutelado por uma ditadura militar, poder dizer que não concordava com o regime por meio de uma metáfora em uma música era muito, mas hoje, no reinado de Marianne, onde você pode simplesmente dizer o que quiser em suas redes sociais, sem ter sua integridade física atacada, falar o que quer parece ser algo tão banal como ter internet.
Da mesma maneira que a internet passou de luxo a necessidade, assim foi com a opinião. Hoje em dia se confunde o direito de opinião com o dever de opinião. Explico, nos atuais tempos democráticos, no mundo digital e globalizado, você simplesmente pode falar o que bem entender, como faço eu aqui neste texto. Mas por poderem falar o que bem entendem sobre o que quiserem, as pessoas passaram a tornar isso uma necessidade, passaram a precisar formular opiniões sobre tudo que acontece no Brasil e no mundo.
Se perguntassem às pessoas do milênio passado, isto é, eu, sobre internet, elas responderiam que uma conexão de internet é um luxo, uma ferramenta legal, mas com a qual conseguiriam viver sem, afinal, já o tinham feito por anos. Hoje em dia, essas mesmas pessoas colocam a fatura da internet em pé de igualdade com a de água e a de energia.
Necessidades mudam, é normal, mas algumas é bom que sejam como sempre são. Não é porque você pode o dizer que deve dizê-lo. Por isso, conclamo a todos fazermos um voto de pobreza em matéria de opinião.
Voto de pobreza foi uma coisa que surgiu na Idade Média, as chamadas ordens mendicantes, naquele período em que as pessoas já tinham tão pouco, surgiram homens e mulheres dispostos a ter menos ainda, eles não tinham um teto sob suas cabeças e muito menos uma família própria. Isto é, eles abriram mão até mesmo do que era indispensável na vida de um medievo.
Que tal seguir o exemplo? Que tal não dispor do que parece ser fundamental: dar opiniões. Ao invés disso estufar o peito para poder dizer, não vi, não assisti, não sei. Não sei! Que palavras libertadoras. Muitas pessoas têm medo de dizê-las, temendo serem julgadas como parvas, mas quão libertador é não ter opinião sobre o que não importa.
A coitada da Glória Pires virou piada na boca do povo ao comentar o óscar de 2016, é claro, ela não ousou comentar sobre um filme que não viu e se esperava dele que tivesse assistido a todos os indicados, afinal, ela era a comentarista do óscar, mas a verdade é que devíamos ter a liberdade de espírito que ela teve para dizer “não sou capaz de opinar”. Até porque, que livros li sobre o assunto? Quantas horas de estudo tenho sobre isso? Quem me constituiu autoridade sobre tal área?
Frequentemente me deparo com perguntas do tipo “O que você acha do pronunciamento do líder religioso da Chechênia?”, “Você viu a guerra no Zimbábue?” e ainda “O que você pensa sobre o projeto de lei número 666?”. A verdade é que não somos livres para falar, mas as pessoas exigem que tenhamos opiniões formadas. Daí surgem os formadores de opinião, pessoas que darão opiniões prontas para que cada um tenha a sua. Entre tantas opiniões, quando você finalmente tiver uma verdadeira opinião sobre algo, ela estará diluída entre várias opiniões prontas que você manifestou. Acredito que nem Sade conseguiria pensar uma vulgarização tamanha dos ideais que tomaram a Bastilha.
Portanto, tal como um guru tibetano, dou essa opinião sobre não ter tantas opiniões, se você não tiver estudado o suficiente sobre o assunto, se não tiver lido ao menos um livro sobre o que disseram, cale-se. É simples, ninguém nunca se arrepende de ficar calado, mas muitos se arrependeram do que falaram.
Por que ficar calado? Oras, porque existem coisas que não é você que precisa resolver, então você ter uma opinião ou não é irrelevante. Do que adianta se importar com uma caixa de gordura entupida no Oriente Médio se em nada mudará na sua vida? Do que adianta se preocupar com a conta não paga de internet do famoso X, se isso não agrega coisa alguma a você?
Cale-se! Assim, vexames serão evitados, mais tempo útil será ganhado e a pobre Marianne não se sentirá tão abusada como tem sido nestes tempos tão democráticos.
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