A Ditadura Juvenil
- Carlos Neiva
- 9 de nov. de 2021
- 6 min de leitura

Acredito que quem faz uma profecia, quando se trata de uma má profecia, não quer que ela venha de fato a se concretizar, mas a avisa exatamente para que tal destino não venha a acontecer. Caso contrário, o profeta se assemelha a Jonas, mas a historieta bíblica já serve como lição ao arauto das desgraças. Não não, quem faz o anúncio de um mal presságio avisa-o não para que seus dons adivinhatórios sejam confirmados, mas avisa para que os homens busquem evitar tal destino terrível.
Esse é o caso do profético livro de Adouls Huxley, Admirável Mundo Novo, que apresenta uma distopia terrível onde a sociedade se perdeu de maneira irremediável. Acredito que os avisos bastante proféticos deste livro publicado em 1932 não deveriam ser a triste sina da humanidade, mas deveriam servir de aviso para todos nós.
O livro se passa em uma Inglaterra futura e distópica onde todas as pessoas são criadas em laboratórios estatais. O Estado regula quantas pessoas deverão ser criadas e todos já são educados e condicionados desde a juventude para bem servir à ordem mundial. Criados em tubos de laboratórios de manipulação genética, as pessoas não conhecem o conceito de pai ou mãe, pois são todos filhos e filhas do Estado. O sexo é apenas um entretenimento prazeroso para os fins do expediente (ensinado por meio de uma educação sexual já desde a infância), todos usam anticoncepcionais para evitar a tragédia de ter um filho e têm relações sexuais com diversas pessoas, sem o conceito de compromisso com uma única pessoa. Junto com o sexo, vem o consumo de soma, uma droga que garante esquecer qualquer sofrimento, todos são aficcionados por experimentar prazeres e mais prazeres, são hedonistas e extremamente consumistas e se irritam se o transporte público se atrasar alguns minutos.
Essa pequena descrição já deixa claro o quanto a profecia de Huxley foi pontual. É claro, há uma série de lições que podem ser retiradas ainda dessa obra. Os leitores menos hedonistas que suportarem a confusa e exaustiva descrição desse admirável mundo novo ao longo das cem primeiras páginas vão se deparar, no resto do livro, com uma trama envolvente e um final surpreendente. É sem dúvidas um livro incrível!
Mas há uma realidade específica apresentada nesse Admirável Mundo Novo a qual gostaria de chamar a atenção nas linhas a seguir, e essa realidade é o horror da velhice que nossa sociedade tem abraçado. Observe o fascinante diálogo das protagonistas:
_ O que ele tem? – sussurrou Lenina. Estava com os olhos arregalados de horror e espanto.
_ Ele é velho, simplesmente – respondeu Bernard, com toda a indiferença que lhe foi possível aparentar. Estava também sobressaltado, mas fez um esforço para se mostrar imperturbável.
_ Velho? – repetiu ela. – Mas o Diretor é velho, e há uma porção de gente que é velha, e no entanto não são assim.
_ É porque não deixamos que fiquem assim. Nós os preservamos de doenças, mantemos artificialmente as secreções internas no nível de equilíbrio da juventude. Não deixamos cair a taxa de magnésio e cálcio abaixo do que era aos trinta anos. Fazemos transfusões de sangue jovem. Mantemos o metabolismo estimulado permanentemente. Por isso, sem dúvida, eles não têm esse aspecto.
Esse incrível diálogo – e os bons romances sempre vão ter sempre bons diálogos – demonstra o horror de uma sociedade pela ideia de ficarem velhos. É claro, o sonho da juventude eterna é algo que permeia o imaginário humano desde sempre, pois os mitos já retratavam a busca pela fonte da juventude ou coisas do tipo, mas o fato se demonstra de uma forma muito mais desiquilibrada hoje. Uma coisa é querer ser bela e jovem para sempre, como a Rainha Má, outra coisa é uma sociedade toda tendo horror à velhice.
Explico: quando nossa sociedade era menos tecnológica, ela dependia mais da memória e da experiência. Logo, aqueles que viveram mais, tinham mais tradição memorizada e, é claro, mais experiência de vida. Até o advento da internet, o idoso tinha o aspecto do sábio, ser mais velho era sinônimo de ser mais sábio: sábio como Odin, como Merlin e como a velha Carochinha.
Mas o que é o jovem? O jovem é um apunhado de incertezas, os hormônios à flor da pele e o coração cheio de ardor. Mas de que vale tanta força se não há experiência e a racionalidade falha diante de tanta emoção? O jovem quer experimentar e sentir, e, por isso, vai quebrar muito a cara antes de “engrossar o couro” e entender o que de fato vale a pena. Jovens são manipuláveis, acham que podem mudar o mundo e criar um paraíso na terra. Jovens são tolos, mas tolos ardorosos. Já os velhos são endurecidos e cansados, mas aprenderam as regras da vida com o tempo, o mesmo tempo que lhes deu rugas.
Porém, com o advento da internet e dos smartphones, essa geração bem experimentada encontrou uma dificuldade de adaptação, e, como explica o filósofo Prof. Luiz Felipe Pondé, os nativos digitais se viram na condição de detentores do conhecimento. O jovem que precisava dos conselhos do avô agora se vê na condição de quem ensina o avô a usar o aplicativo do “zap”. Essa virada cultural deu o poder aos jovens como detentores da tradição e colocou os idosos no escanteio, como modelos ultrapassados assim como os de celulares, consoles e computadores.
Uma vez colocados no topo da pirâmide social, os jovens, com sua pouca experiência de vida, excessiva arrogância e imaturidade emocional; se viram embebidos de poder, tornando-se então tiranos. Foi dado o início à ditadura juvenil, e quem não fosse jovem estava banido da sociedade. E não posso ser acusado de exageros, expressões como “muito old” ou “boomer” ou “seu velho” surgem das bocas ou teclados de jovens debochados que veem os mais velhos como pessoas que não tem ideia do que são os novos tempos, uma era onde a juventude dita o que deve ser, uma era de tendências jovens e diferenciadas.
Na ditadura juvenil não há respeito aos idosos e nem à sua tradição, o moderno e revolucionário é que está em voga. Se o idoso não quiser ser posto de lado, silenciado ou transformado em um bichinho fofinho, deve se portar como um jovem. O melhor exemplo desse caso é o do senhor Nilson Izaias, um idoso de setenta e quatro anos de bastante experiência que, na tentativa de sair do isolacionismo em que estava, foi para o YouTube se portar como a molecada brincando de slime. Um homem que, com toda certeza, tem muita experiência para contar só foi notado quanto agiu como um pré-adolescente. O memso vale para todos os idosos que foram se reinventar no TikTok.
E você acha que está de fora disso? Então pergunte a si mesmo, você prefere o padre/pastor mais velho ou fica empolgado quando vem o mais jovem com um discurso mais jovial? Lembre-se que a palavra “presbítero” significa literalmente “ancião” e reflita consigo se você não tem contribuído para a ditadura juvenil.
Os adultos todos querem ser jovens, a simples ideia de envelhecer é terrível. Mas não tem nada a ver com a ideia de que a morte se aproxima, essa ideia assustadora que inspirou os contos sobre a fonte da juventude. Não, o medo agora é de ser inadequado e descartado como se faz com um iPhone de modelo ultrapassado. Os versos do poema “Retrato” de Cecília Meireles trazem pânico aos adultos de hoje: “Eu não tinha estas mãos sem força, / Tão paradas e frias e mortas; / Eu não tinha este coração / Que nem se mostra”. Mas sinto muito decepcionar qualquer esperançoso por processos químicos como os do livro Admirável Mundo Novo, nós vamos ficar velhos. Ninguém é eternamente jovem! Repito esse fato deleitando as palavras de Adélia Prado: “Todos vamos envelhecer… Querendo ou não iremos todos envelhecer. As pernas irão pesar a coluna doer o colesterol aumentar. A imagem no espelho irá se alterar gradativamente e perderemos estatura, lábios e cabelos”.
É claro, com uma situação tão catastrófica, não me espanta que todos queiram ser jovens. As crianças agem de forma bem mais prematura, os adultos em plena crise de meia idade juram que são jovens e descolados e a juventude tem seu prazo cada vez mais esticado. No programa Roda Viva, a jornalista Vera Magalhães, ao entrevistar o youtuber Felipe Neto, disse que ele era um “jovem promissor”. Ora, um senhor de trinta e dois anos como ele não está mais em idade de ser um jovem promissor, mas sim de ser, no mínimo, um adulto com uma certa contribuição para a sociedade. Jovem promissor era Alexandre Magno, que, antes de inteirar a idade do influencer, já tinha dominado todo o mundo conhecido. A intenção da jornalista foi boa, mas as palavras escolhidas para elogiar demonstram a loucura em que estamos vivendo.
O conselho mais sensato sobre isso vem de Olavo Bilac, em seu poema “A Velhice” que aconselha: “Não choremos, amigo, a mocidade! / Envelheçamos rindo. Envelheçamos / Como as árvores fortes envelhecem”. Sim, como as árvores fortes! Envelhecer nunca foi uma maldição, é sinônimo de sabedoria, experiência e de que vivemos uma vida e, por isso, trazemos as marcas do tempo, esse deus cruel que nos devora a todos, em nosso rosto.
Enfim, vivemos uma era incerta e ainda vamos pagar caro pela forma como deixamos a tecnologia manipular nossas vidas. Acredito que a ditadura juvenil ainda nos trará muitas dores e nos condenará a repetir vários erros do passado. É muito triste ver homens feitos prostituindo a própria personalidade para não se verem à margem da sociedade. Aldous Huxley deu-nos a profecia como alerta em seu livro, mas talvez o presságio literário tenha se tornado um terrível e inevitável destino.
Texto originalmente publicado no blog do Canal 7 em 14 de Janeiro de 2021.
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