Se há uma expressão que acho particularmente divertida é a expressão “é como jogar xadrez com um pombo”. Explico, essa expressão me força a formular automaticamente a imagem de um profissional xadrezista sentado diante de um tabuleiro tendo como adversário essa pequena ave urbana (eu diria “rato alado”) que torce bruscamente o pescoço virando um dos olhos bidimensionais e arrulhando. O xadrezista faz uma jogada e se afasta em postura ereta, ao o que o adversário columbino move um peão com o bico. Eu não sei se é uma verdade universal ou eu que me divirto fácil, mas essa cena é hilariante.
A expressão tem sua força no fato central de o pombo ser considerado um animal de inteligência limitada por causa do tamanho de seu cérebro. Quanto a isso, uma professora chata logo poderia contra-argumentar dizendo que o pombo é um bichinho muito esperto, que consegue fazer complexas manobras áreas, que consegue localizar comida a quilômetros de distância e tem um sentido de direção formidável, um verdadeiro GPS. A essa chata professora que busca apenas defender a honra da classe oprimida dos columbídeos, pode-se responder que é uma expressão analógica, que pega apenas um aspecto da comparação e formula um paralelo para expressar uma ideia. Pombos tem cérebros pequenos, indivíduos de atitudes imbecis devem ter um cérebro pequeno como de um pombo.
Mas, deixando os pombos de lado, gostaria de contar uma história que aconteceu com um amigo meu. Acho que a história cabe aqui, porque é uma história sobre xadrez. Esse meu amigo me contou que estava no campus de uma universidade federal desfrutando de seu intervalo. Uma colega de classe também estava lá e foram jogar xadrez. Não sei dizer quem chamou quem, mas não vem ao caso. O fato é que esse meu amigo é muito bom em jogar xadrez. Ele, inclusive, acompanha o que para mim é apenas um jogo de tabuleiro, como uma modalidade esportiva, falando o nome de xadrezistas renomados. O cara não só entende muito de xadrez, como é muito bom nesse esporte.
Já que apresentei o amigo, devo também apresentar sua colega e adversária. Ela era uma mulher de cabelo curto e pintado em um cor gritante, tinha uns quilinhos acima do que é o padrão de beleza vigente e fazia usos de piercings e tatuagens. Quanto às suas convicções pessoais, podemos afirmar com toda certeza que ela era uma feminista bastante comprometida com a causa.
Apresentado os jogadores, o jogo começou. A vitória, como era de se esperar foi do meu colega tão dedicado a arte enxadrística. O movimento que ele fez foi até bem elaborado. Atraiu a atenção da oponente com uma distração enquanto seu objetivo estava no que importava: realizar o xeque-mate. Para tal feito, sacrificou sua rainha que, tão logo abatida, deixou o rei da colega livre para o movimento conclusivo. Essa seria só mais uma das muitas partidas realizadas naquele campus em que, ao final do jogo, uma pessoa ganha e outra perde, se a derrotada não se levantasse em protesto diante da própria derrota e denunciasse o oponente por ter ganhado apenas porque era machista, e sair marchando revolucionariamente.
Este meu amigo ficou perplexo com a acusação. Não havia ganhado da colega por ela ser uma mulher que ele desejava oprimir. Ganhou porque o jogo deve ser jogado com essa intenção: ganhar. Se o objetivo do jogo era proteger o rei, a rainha não foi usada devidamente? Será que havia um machismo oculto no seu pensamento, tratando tão mal aquela peça de plástico que era o símbolo do empoderamento feminino? Seria uma postura mais politicamente correta deixar que a colega ganhasse só por ser mulher? Mas onde estaria a igualdade? Se não, o que deveria fazer? Deveria proteger as duas peças reais, mantendo assim a peça com a maior movimentação do tabuleiro retraída? Mas a classe oprimida dos proletários peões ficaria satisfeita com isso? Onde estava o erro: ganhar da colega ou sacrificar a rainha?
O que meu colega passou foi exatamente aquilo que está contido na ideia de jogar xadrez com um pombo. Nessa expressão, não se julga o pombo apenas por sua pouca capacidade intelectual, mas por mais pontos analógicos. Ora, jogando xadrez com um pombo, você poderia elaborar uma estratégia de ação dentro da lógica de movimento do xadrez, mas o pombo apenas derrubaria as peças, defecaria no tabuleiro e sairia voando.
Quando o assunto é uma ideologia, não adianta a movimentação lógica que você faça na sua argumentação. Essa pessoa vai espernear, atacar sua pessoa, usar de apelo emocional, fazer conclusões incorretas ou usar de outras falácias, porque no discurso ideológico não há lógica, há apenas denúncia e desconstrução. Então você não derruba um argumento, você acusa o discurso do outro. Para acusar, há muitas formas de fazê-lo, basta se colocar em uma condição de oprimido e fazer da diferença entre você e ele uma luta de classes.
O crime do seu adversário pode ser ter nascido branco, ter tido um pai presente, ser de classe média, não ter deficiência, ser homem, ser cristão, ser de uma determinada região do Brasil, ter uma determinada profissão, ter um sexo definido e por aí vai. No fundo, não é necessário uma lógica, as peças não precisam ser movimentadas, basta derrubar tudo e sair voando.
Um discussão racional, feita por pessoas que querem encontrar a solução, a que chamo “verdade”, tem um fundamento lógico e é feita na compreensão do que o outro fala e da sua refutação por meio de colocações objetivas, como se a discussão fosse um jogo de xadrez, mas em um mundo de ideologias, as pessoas não querem jogar, elas querem derrubar o tabuleiro e esparramar as peças pelo pátio, arrotando um ar de auto-suficiência de quem é o grande pensador da sua causa. O diálogo se tornou impossível.
Quando meu amigo decidiu jogar xadrez com a feminista, o que ele não sabia é que não estava fazendo apenas uma modalidade lúdico-esportiva, estava representando ali a atual situação do debate intelectual. Ele, apesar de ter ganho conforme as regras da lógica, teve que ficar com um gosto ruim de que aquilo não tinha sido muito certo. A feminista columbídea, ao contrário, apesar de derrotada na lógica do jogo, pode se levantar satisfeita por ter feito mais uma denúncia em prol da revolução. Ainda bem que ela não defecou no tabuleiro.
Excelente forma de abordar essa expressão tão presente no nosso dia a dia. Me lembrou muito as discussões que tive (e venho tendo) com meu pai sobre os mais diversos temas. Parabéns pelo site, é genuinamente agradável no geral.
Maravilhoso texto, mas no caso a tal perdedora do xadrez não defecou no tabuleiro, mas nos ouvidos de todos que ouviram seus esperneios diante da derrota