Hoje em dia o mercado de trabalho é bastante disputado e só consegue se sobressair quem mostra que é mais capaz. Porém, é mais capaz quem se debruça sobre o seu trabalho e o aprofunda. Surgem assim os cursos de especialização em que o sujeito vai afunilando seu conhecimento, cada vez mais específico, cada vez mais objetivo. Assim, vamos ter pessoas totalmente focadas em áreas específicas, mas que não conseguem lidar com algo mais amplo da sua própria área. As descobertas científicas são muitas, dirão, tem muita coisa para gerir. O conhecimento foi dividido em departamentos.
Certa vez ouvi de uma mulher que era doutora em cupim. Em cupim! A mulher especializou-se em formas de vida, dedicou-se a invertebrados, focou-se em artrópodes, fechou o escopo em insetos, adentrou a ordem dictyopera, apegou-se na ordem blattodea, preferiu os isopteros e elegeu entre os quais o bom e velho cupim brasileiro. É claro, fazia inúmeras pesquisas que ajudavam muito a agricultura da região, até do país. Mas deve ser meio triste acordar de manhã e repetir para si mesma “Eu sou doutora em cupins”.
Porém, quem quer viver no terceiro milênio, esse vai ter que se especializar. O mercado de trabalho não está interessado em gente que não tenha objetivos.
Meu pai não tem nem o ensino fundamental concluído, mas é caminhoneiro há mais de duas décadas. Tornou-se não só especialista em caminhão, como um exímio conhecedor das estradas de São Paulo. Não é bem uma especialização lato sensu, mas a escola da vida ensina bem, só não emite diploma.
Especialista em rotas paulistas, meu pai se configurava um bandeirante às avessas, levando produtos do interior goiano para a grande capital e seu entorno.
Até que ele curte essa vida de bandeirante reverso. No seu caminhão, montou tudo para que pudesse ter uma rota confortável. O caminhão era equipado com uma cozinha, onde ele tinha mesa e cadeiras dobráveis, uma mini geladeira, fogão à gás, e tudo que precisasse para fazer sua refeição. No caminhão havia ainda uma televisão portátil, um carregador de celular, um rádio amador, um toca fitas e um garrafão térmico de água. A vida é assim, profissional, tem que trabalhar com ferramentas apropriadas.
Um belo dia, meu pai parou em um posto de gasolina, nessas típicas paradas de caminhões, para passar a noite. Montou então seu pequeno acampamento. Desdobrou as cadeiras e a mesa, colocou o refrigerador no painel, ligou sua televisão na novela e começou a cozinhar tranquilamente enquanto os celulares (o pessoal e o da empresa) carregavam no painel.
Aí tem um trecho da história que meu pai não consegue contar. Ele foi golpeado na cabeça e desmaiou. Quando acordou, tempos depois, sentiu um galo na cabeça e que alguém havia estado ali e levado sua televisão portátil. Ele tinha sido desacordado e roubado.
Quando ele voltou de viagem, contou o fato a mim e ao resto da família. Perguntamos o que ele tinha perdido, mas ele nos acalmou dizendo que só fora levada sua televisão portátil. Foi aí que me questionei, se havia um refrigerador também portátil, dois celulares, uma maleta com os cheques e acertos da empresa e a sua carteira dando sopa, por que o amigo do alheio levou apenas a TV? Tempo ele teve de sobra, pois meu pai estava desacordado. Fiz o questionamento em voz alta e um dos meus tios respondeu: vai ver que ele era um ladrão apenas de televisões.
Um ladrão de televisores! Bem que podia ser isso mesmo, o sujeito saiu de casa para exercer seu não tão honesto ofício e estava focado no seu objetivo. Consigo até imaginá-lo com as mãos nos bolsos, falando consigo mesmo: “Vai lá, Chicão, você consegue! Você é um ladrão de televisão, vai sair por aí e não vai voltar para casa enquanto não conseguir roubar uma TV. Coragem, você é o cara!”. Ele deve ter se repetido isso muitas vezes para si mesmo, conforme tinha aprendido com aquele coach no YouTube. E assim foi se animando, ainda que o dia todo pareça infrutífero. Já de noite, ele se sentia tentado em voltar para casa, mas continuava repetindo para si que tinha que fazer o seu trabalho. Ele caminhou bastante e por fim viu aquele inocente caminhoneiro que cozinhava de olho na última tramoia da vilã da novela. Então, não pensou duas vezes, pegou uma pedra, aproximou-se lentamente e “PAU!”. O motorista caiu desmaiado, era só afanar o televisor.
Naquele dia, o ladrão voltou para casa satisfeito por ter feito o seu trabalho. Ele era um ladrão de televisões profissional e tinha agido com especialidade mais uma vez. Tudo bem que era um televisor portátil, velho e com imagem em preto e branco, mas era um televisor e correspondia a sua área de atuação. Missão completa, hora de voltar para casa e comer um mexidão na frigideira.
Mas o mais engraçado deve ser ele desplugando o televisor e notando todos aqueles outros bens, o refrigerador, a maleta, a carteira e os celulares, e mesmo assim passando reto. “Sou um ladrão de televisão, não lido bem com essas coisas”. Talvez sua consciência tenha dito que estava fácil, mas ele sem dúvida retrucou “Claro que não! Eu não sei com quem revender esse refrigerador, não tenho especialização em decodificar senhas de celulares e não lido muito bem com essa coisa de cheque. Meu forte é televisão!’.
Eu pensei nisso tudo em questões de segundos, mas a afirmação de meu tio, ainda que irônica, pareceu-me um reflexo da expansão técnica da sociedade ocidental, onde todos são muito bons em algo específico, mas não conseguem lidar com detalhes menores que tocam sua mesma área.
Diante da colocação de meu tio, a família caiu na gargalhada, mas era uma boa explicação e me parecia a única explicação plausível. Ele era um ladrão de televisão, não um larápio caótico. Ele saiu de casa para roubar televisão, não outra coisa. Afanava televisores e podia se ufanar disso. Ladrão de televisão é ladrão de televisão!
Aliás, conseguimos nos lembrar até de outra situação que mostrava a especialização de roubos: quando meus tios eram moleques, um deles se especializou no furto de galinhas. Modéstia parte, ele era um excelente ladrão de galinhas. Em questões de segundos ele saltava o muro para o quintal da vizinha. As galinhas mal notavam sua presença. Os demais tios permaneciam do outro lado do muro, no próprio quintal. A galinha só tinha tempo de soltar um abafado “có” e já era arremessada destroncada para os demais tios. Assim foi muitas vezes e a vizinha nunca o pegou, dando falta dos bípedes só quando elas já tinham sido devoradas pela quadrilha mirim.
Certo dia, a vizinha conversava na calçada com o padrasto de meus tios, o meu “vôdrasto”, e comentou que estava chateada pois alguém havia roubado o seu leitão. O tio expert em roubar galinhas estava perto. Meu avô, sem saber das traquinagens de seus enteados, tentou fazer uma conclusão lógica: “Deve ser o mesmo que sempre rouba suas galinhas”. Ao que meu tio logo se defendeu: “Opa! Opa! Claro que não! Ladrão de galinha é ladrão de galinha e ladrão de porco é ladrão de porco!”.
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