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Foto do escritorCarlos Neiva

O mundo grego no Brasil Imperial

Uma análise das referências helenísticas em “O Ateneu” de Raul Pompéia



O artigo a seguir tem como objetivo evidenciar as características que se referem aos costumes da cultura grega na obra O Ateneu de Raul Pompéia, a fim de, por meio desses exemplos, demonstrar como essa obra, apesar de ser pertencente à escola realista/naturalista, bebe diretamente na fonte clássica.



Vais encontrar o mundo (...). Coragem para a luta. (O Ateneu)


Introdução


Publicado inicialmente em doze capítulos no jornal Gazeta de Notícias, em 1886, o romance intitulado O Ateneu, de Raul Pompéia, trata da história de Sérgio, um garoto que vai estudar em um colégio interno de renome do Rio de Janeiro. Lá, o jovem irá viver todas as descobertas da adolescência além de sofrer com uma educação extremamente severa e punitiva.


Por seu cunho crítico à sociedade além de uma visão realista das personagens, além de uma determinação do ambiente das mesmas sobre as mesmas. Essa obra encabeça a lista de obras realistas/naturalistas brasileiras como uma das principais obras desse período. Como na Literatura nada é preto ou branco, é possível declarar que a principal obra de Pompéia possui (além dos já comentados traços realistas/naturalistas) diversas referências à civilização grega em sua narrativa.


Ao se abordar sobre referências ao mundo grego, é preciso ter em mente que muito do que se tem na civilização ocidental é fundamentado na cultura helenística, mas há traços que se referem diretamente a cultura grega na obra em questão, e são esses traços que serão comentados.


Os elementos helenísticos que serão apontados, podem ser reduzidos a quatro tópicos. São eles: 1) A educação escolar grega; 2) O treinamento militar dos jovens; 3) O misticismo e a mitologia; e 4) A pederastia entre os gregos. São esses tópicos que serão trabalhados adiante.



A educação escolar grega


A estrutura escolar que conhecemos hoje é invenção dos gregos. Ainda que essa esteja bastante diferente e alterada do que a primeira era, essas possuem o esqueleto semelhante. Em O Ateneu (2013), os alunos são retirados dos pais para aprenderem a viver como a sociedade espera que vivam. No colégio, há uma série de máximas gregas. “Outro quadros vidraçados exibiam sonoramente regras morais e conselhos muito conhecidos de amor à verdade, aos pais, e temor de Deus, que estranhei como um código de redundância”. (POMPÉIA, 2013, p. 33). Tais dizeres estavam espalhados pelas paredes, a fim de disciplinar os garotos por meio de memorizações de máximas, tal como era feito na Antiga Grécia.


A estrutura da escola, que anseia à disciplina sobre todas as coisas, iguala-se ao modelo de escola grega, como:


Platão comparou ao adestramento de cães de caça. A princípio esse adestramento limitava-se a uma reduzida classe social, a nobreza. O kalos kagathos grego dos tempos clássicos revela esta origem tão claramente como o gentleman inglês. (JAEGER, 1995, p. 24).

Tal qual, o colégio Ateneu se faz um colégio voltado para os burgueses para adestrar os jovens rapazes para viver em sociedade.


E não é apenas isso, há no colégio uma forte relação discípulo-alunos, pois os mestres (professores) são vistos como fonte de sabedoria, e o velho Aristarco, diretor da escola, possui o merecimento de todo respeito. “Ah! Meu filho, ferir a um mestre é como ferir ao próprio pai, e os parricidas são malditos”. (POMPÉIA, 2013, p. 157). O diretor é visto como um deus supremo. “... por cima de tudo, céus de trovões sobre os desalentos, a fúria tonante do Júpiter-diretor, o tremendo Aristarco dos momentos graves”. (POMPÉIA, 2013, p. 44). Os alunos - do latim "a-lumnus", isto é, os que não têm luz - se colocam na condição de discípulos e seguidores de seus mestres, detentores do saber, portadores da luz.



O treinamento militar dos jovens


Um nobre grego era antes de tudo um militar. As guerras com os povos vizinhos é que garantiam sua riqueza, a partir dos espólios e escravos capturados. Para isso, a escola helênica se dedicava em dar uma formação militar aos seus jovens. Entre essas escolas, a que mais se destacava era a escola da pólis Esparta. Sua formação militar era demasiado severa e o exército espartano era tão disciplinado quanto o exército romano.


Para Jaeger, a educação espartana compara “o antigo militarismo espartano como a sequência de um estado antiguíssimo da civilização dórica”. (1995, p. 111). Raça dos gregos de loira cabeleira, a qual pertence muitos dos heróis das tragédias gregas, como Aquiles, por exemplo. Sendo assim, a educação militar dos espartanos é antes de tudo, uma educação para o heroísmo, um manter da glória do passado homérico.


Em, O Ateneu (2013) temos a resquícios da mesma formação militar, onde os jovens alunos acordam como soldados de um quartel e marcham como uma tropa. Raul Pompéia poderia evitar comparações ou fazer qualquer outra, mas essa foi sua escolha de metáfora:


Às duas da noite, troaram os tambores como em quartel assaltado. Os rapazes, que mal havíamos dormido, na excitação das vésperas, precipitaram-se dos dormitórios.
Às três e pouco estávamos na serra.
Aristarco rompia a marcha, valente como um mancebo, animando a desfilada como Napoleão nos Alpes. (POMPÉIA, 2013, p. 145).

E como há formação militar, também há guerra. Nesse caso, não como um ato bélico de fato, mas pequenos fatos violentos que tumultuam os dias dos meninos do internato. “Tinha lutado no jardim o Malheiro e o Alves; que briga dos dois brutos!”. (idem, p. 122). Entre as brigas juvenis, aconteceu até mesmo um assassinato. “O homem da faca era um dos jardineiros do Ateneu. Durante o jantar enfrentara-se de razões com um criado da casa de Aristarco e o matara”. (idem, p. 92).


É interessante ainda notar que, como com os gregos, há um culto a estética e a simetria do corpo. O porte físico dos alunos devia ser atlético e musculoso, e para chegar a esse fim, várias séries de exercícios físicos eram feitos.


Acabadas as evoluções, apresentaram-se os exercícios. Músculos do braço, músculos do tronco, tendões dos jarretes, a teoria toda do corpore sano foi praticada valentemente ali, precisamente com a simultaneidade exata das extensas máquinas. (idem, p. 23-24).

A prática física do romance não se trata da percepção de saúde que temos atualmente, era uma busca por um ideal estético, um ideal de perfeição humana. Mas essa perfeição era necessariamente uma perfeição masculina, tal qual o colégio de rapazes de Aristarco.



O misticismo e a mitologia


É impossível falar dos gregos sem pensar na sua rica mitologia. As divindades e criaturas míticas foram retratadas na literatura de todos os países. Na obra O Ateneu (2013), não poderia ser diferente. O romance faz intertextos com vários mitos, dentre eles, o mito de Zeus e Leda é o que é referenciado mais vezes. “Júpiter guardava para oportunidade a carícia de edredom, o gesto flexuoso do soberano cisne”. (idem, p. 71). Esse trecho, por exemplo, demonstra a referência ao mito.


Leda era a bela esposa de Tíntano, rei de Esparta. Um dia, enquanto ela estava deitada na beira de um rio, Zeus apareceu-lhe sobre a forma de um indefeso, que tentava escapar de uma águia (ave-símbolo de Zeus). Leda apiedou-se do Cisne, abraçou-o, e Zeus então a tomou de surpresa. Assim, Leda tornou-se a única mulher a pôr um ovo, do qual nasceram a bela Helena (mais tarde acusada de ser responsável ela guerra de Tróia) e os irmãos gêmeos Castor e Pólux. (WILKINSON; PHILIP, 2010, p. 43).

Os nomes das divindades que compõe o panteão grego aparecem por todo o romance, tanto na forma grega (como Zeus, por exemplo), como na forma romana (como é o caso de Júpiter). Essa encarnação metafórica dos deuses aproxima ainda mais o colégio Ateneu do mundo grego.


E se a mitologia grega tem seu espaço, a filosofia helenística também deve ter. “Rômulo filosofava por Epicuro” (POMPÉIA, 2013, p. 135). Em O Ateneu (2013), mais do que aulas de filosofia e mais do que jovens filósofos, os alunos do Ateneu chegam a vivenciar uma das obras mais célebres de Platão.


No bosque dos bambus, á esquerda, estavam armadas as longas mesas para o banquete das quatro horas. [...] Nos enredamentos obscuros do bosque, exatamente onde o artista grego incluiria um sátiro, podia-se surpreender sobre uma blusa o confiado abandono bucólico de outros colegas. [...] Obrigados a uma sobranceria estóica de filósofos, depois da aprovação definitiva do forno, nem os perus, nem os leitões, nem os tímidos frangos mostravam aperceber-se da situação arriscada. [...] Sanches meio embriagado, beijava os vizinhos, caindo, com os beiços em tromba. [...] à cabeceira da mesa principal, apresentavam-se de pé Aristarco e o empertigadinho e cúprico professor Venâncio. (idem, p. 149-151).

Assim como na obra de Platão, os alunos do Ateneu se encontram em um local bucólico (tão semelhante ao grego, que seria possível ter um sátiro ali) para celebrar um banquete. O autor faz questão de metaforizá-los como filósofos. E naquele local, junto do mestre, os discípulos celebram o amor philia que Jaeger irá tratar como algo muito próximo da teoria da amizade. (2010, p. 719).


Além dessa amizade, os rapazes ali experimentam uma verdadeira bacanal dionisíaca. Onde eles irão comer ferozmente e embriagar-se para finalmente chegarem à parte da sexualidade, ou como aponta Jaeger, a “relação erótica” (idem, p. 727). Mas como estão diante de seu mestre que não suporta imoralidades (POMPÉIA, 2010, p. 34). Sanches marca o ritual de uma forma metafórica apenas beijando seus colegas sentados ao seu lado. Mas esse ponto irá ser tratado no próximo tópico.


A pederastia entre os gregos


Na obra O Ateneu (2013), os jovens alunos crescem em um internato. Lá, eles passam pela puberdade e descoberta da vida amorosa. Mas Pompéia deixa uma forte intertextualidade com a cultura helenística. Uma vez que os alunos mais velhos têm casos com os alunos mais novos que eles deveriam orientar nos estudos, mas acabam orientando na vida amorosa. Como é o caso de Sanches e Sérgio, este último, o protagonista, é orientado pelo primeiro enquanto ele vai se aproximando numa relação homo afetiva.


A franqueza de convivência aumentou dia a dia, em progresso imperceptível. Tomávamos lugar no mesmo banco. Sanches foi se aproximando. Encostava-se, depois, muito a mim. Fechava o livro dele e lia no meu, bafejando-me o rosto com respiração de cansaço. (idem, p. 55).

A relação de romance entre os rapazes mais velhos para com os mais novos era comum no Ateneu. Há alguns que até mesmo desejavam ser o diretor, para poder relacionar-se com todos os mais novos. “Não há nada neste mundo como ser safado! Uma bonita meninada, que festança! Os meninos gostam da gente, a gente gosta dos meninos e o colégio cresce: crecite!” (idem, p. 132).


Essas duas relações são semelhante a da pederastia grega que era:


A relação homossexual básica e aceita pela sociedade ateniense se dava no relacionamento amoroso de um homem mais velho, o erastes (amante), por um jovem a quem chamavam eromenos (amado), que deveria ter mais de 12 anos e menos de 18. Esse relacionamento era chamado paiderastia (amor a meninos), ou, como pode ser melhor compreendido, homoerotismo, e tinha como finalidade a transmissão de conhecimento do erastes ao eromenos. O que para nós pode parecer anormal, para os gregos era o paradigma da educação masculina, a paidéia (educação) que somente se realizava pela paiderastia. (CORINO, 2006, p. 22).

Mas para um grego, era inaceitável que dois homens da mesma idade podiam se relacionar, “pois significava que um dos homens adotava a posição passiva, traindo assim a masculinidade que dele requeria o papel de cidadão ativo”. (idem, p. 21-22).


Essa situação de homens da mesma idade se relacionarem e um deles perder sua masculinidade está também representada no colégio, onde dois rapazes da mesma turma (diferente dos casos anteriores, onde sempre havia um mais velho e um mais novo). Cândido, ao se relacionar com Tourinho, passa a assinar cartas com o nome de Cândida, em sinal da sua perda de masculinidade. Os dois são punidos severamente com humilhação pública, a mesma punição dada a um grego que assim agisse. “Cândido e Tourinho, braço dobrado contra os olhos, espreitavam-se a furto, confortando-se na identidade da desgraça, como Francesca e Paolo no inferno”. (POMPÉIA, 2013, p. 158).



Considerações finais


A quantidade de elementos helenísticos na obra O Ateneu (2013) mostra como essa civilização contribuiu para a nossa literatura e sociedade. E ainda mais que isso: o trabalho de transformar o Ateneu em um pedaço da Antiga Grécia no Brasil Imperial é bem digno de louvor, pois Raul Pompéia quebra com as características da escola realista/naturalista e bebe tanto em uma fonte parnasiana, pois retorna ao mundo grego com uma excessiva preocupação estética de sua escrita, como em um pré-simbolismo cheios de misticismo e um catolicismo comportado em um mar de metáforas.


Sendo assim, pode-se concluir que O Ateneu (2013) é uma obra totalmente única e marcante para a história da literatura brasileira. Pompéia não só brincou de maldizer seu antigo colégio, queimando-o no final, mas mostrou a imortalidade dos gregos e que eles estão por trás de nossa literatura, educação, estrutura social e, sobretudo, de nossa cultura. Pode-se então afirmar, parafraseando Raul Pompéia que os imortais gregos “desdenham dos séculos efêmeros”. (idem, p. 120).



REFERÊNCIAS


CORINO, Luiz Carlos Pinto. Homoeortismo na Grécia Antiga: homossexualidade e bissexualidade, mitos e verdades. In: Bíblos. n. 19. p. 19-24. Disponível em: <http://pakacademicsearch.com/pdf-files/art/135/19-24%20v.%2019%20(2006).pdf>. Acesso em: 27 out. 2014.


JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.


POMPÉIA, Raul. O Ateneu. 4. ed. São Paulo: Martin Claret, 2013.


WILKINSON, Philip; PHILIP, Neil. Guia Ilustrado Zahar: Mitologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

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