Publicado originalmente em 2016.
Diferente de muitos atores que preferem esvaziar-se de si e tornarem-se cem por cento o personagem interpretado, o ator Robert Downey Júnior prefere dar a sua própria personagem para o personagem que interpreta, não importa o quanto a personalidade desse mesmo já seja consagrada e conhecida pelo público. Foi assim que ele criou o seu próprio Sherlock Holmes, muito diferente do detetive do Sir Arthur Conan Doyle, e foi assim que ele levou Anthony Stark, o Invencível Homem de Ferro, para as telas do cinema.
O Tony Stark dos cinemas é bem diferente do herói visionário dos quadrinhos. O Stark das telonas é sarcástico, alto-confiante e bem-humorado, bem diferente do alcoólatra da consagrada HQ “O Demônio na Garrafa” ou o cientista criado por Stan Lee que decidiu que os heróis unidos por Loki deveriam continuar juntos sob o título de Os Vingadores.
O fato é que me pus a pensar no quanto gostamos de construir nossas armaduras, para nos escondermos dentro de uma casca, mantendo nossa fragilidade protegida e oculta.
Entretanto, quando pensei em utilizar Tony Stark como metáfora dessa realidade, assisti novamente, na minha cabeça, a consagrada cena do filme Os Vingadores, em que o Capitão América interroga o herói futurista de se esconder dentro da armadura, ao que ele pergunta, debaixo dessa armadura, o que sobra? E então vem a grande resposta “deal with it”: gênio, playboy, bilionário e filantropo.
Quando me lembrei disso, desisti logo do exemplo e passei a pensar em Victor Von Doom, o Doutor Destino, temível monarca latveriano que por baixo daquela armadura de ditador implacável, esconde uma criança cigana órfã com uma cicatriz no rosto e outra na alma. Mas quem se identifica com os vilões? O caso dos dois personagens é até o mesmo: feridas do passado ocultadas atrás de uma armadura que os faz sentir mais forte, no caso de Von Doom, há até uma armadura no caráter, alguém ressentido que se recusa a pedir ajuda a alguém e acha ser capaz de tudo; no caso de Stark, por causa do Stark de Downey Jr. não daria para fazer o mesmo paralelo… ou daria?
Foi aí que veio a luz: Se eu fosse o Capitão América, teria tomado os óculos “deal with it” de Tony Stark apenas refazendo a pergunta: E essa outra armadura, sem ela, o que sobra? Mas como o escoteiro não pensou nisso, penso nisso agora eu e retomo o personagem querido inicial, fazendo minha metáfora com um herói querido e não um vilão cruel que foi porcamente representado no cinema… três vezes!
Anthony Stark teve uma vida sofrida: quem já nasceu com tudo, não tinha o que conquistar; estava sempre a sombra do pai, o gênio Howard Stark; tinha problemas com esse pai; e para variar perdera a mãe que tanto amava. O Homem de Ferro teria tudo para ser um vilão, nos moldes do Dr. Destino, mas preferiu ser apenas uma fabricante de armas babaca e irresponsável, até que ocorreu todo o incidente que o transformou no super-herói que todos conhecemos.
O humor sarcástico de Stark o protege das suas inseguranças; sua irresponsabilidade o livra dos entraves mentais que ele mesmo criou; suas manias e obsessões o impedem de sentir aquele antigo medo de acordar de noite e se sentir uma criança que chama pela sua mãe e não a encontra; sua arrogância o liberta das cadeias do seu complexo de inferioridade ao se por à sombra de seu pai; sua armadura de bronze, cobre e estanho (Homem de Cobre, Homem de Bronze e Homem de Estanho não venderiam quadrinhos) faz com que ele esqueça que é apenas um nerd em meio a um mundo de bullies superpoderosos.
E a ficção apenas imita a realidade. Quantas vezes cada um de nós também vai criando a sua armadura a fim de esconder as nossas fraquezas, meios e receios? Se você parar para refletir bem a sua vida e a sua história, pode ser que encontre uma série de feridas dolorosas que deixaram cicatrizes profundas na sua alma (como o rosto de Victor Von Doom ou o peito de Anthony Stark), e para se proteger, pois expor esses ferimentos nesse mundo cruel é suicídio, acabou se escondendo atrás de armaduras e mais armaduras. Digo armaduras, no plural, pois tem gente que já sofreu tanto, que não só entrou em uma Mach XXIII, como ainda entrou com ela dentro de uma Hulkbuster, para ver se ficava enfim livre daqueles tormentos “hulk-lescos”.
Mas o que fazer quando deparamos com essa realidade e vemos que passamos anos de nossa vida interpretando um personagem que não somos nós? E por isso tanta tristeza e insatisfação, pois estávamos engessados em uma personalidade que não nos pertencia de fato, mas foi sendo colocada com o tempo, como o gesso que vai secando. O que fazer para sermos nós mesmos? Como arrancar essa armadura que parece ter sido soldada na nossa pele? É um processo doloroso, mas promete bons resultados no final.
Arrancar a armadura, sair da zona de conforto, destruir o que não somos nós. Talvez seja isso que o diretor de Homem de Ferro 3 tenha tentado fazer (de uma forma muito infeliz, coitado!), quando Tony Stark vence seus surtos explodindo as armaduras e retirando os estilhaços de metal do seu sistema circulatório. Aqui, é preciso um exame de consciência rigoroso. É preciso analisar bem o que é carne, o que é ferida e o que é metal. Como eu era desde criança? Como fui mudando com o tempo? Pelo que passei? O que me fez sofrer? Do que tenho medo? O que eu forço para ser ou parecer? Sou arrogante e presunçoso? Causo medo nos outros? E por aí vai.
Na hora de retirar a armadura, vai ser necessário muito esforço, já disse e repito: está colado na carne, e é preciso tomar cuidado para não arrancar carne. Passar por esse processo sem tomar o devido cuidado e sem o devido conhecimento de si (não seja tão precipitado em pensar já tê-lo) pode fazer com que você faça feridas piores do que as que existiam. Talvez a maior virtude de que se precise seja a coragem. Coragem de mudar até em coisas corriqueiras, tem muita coisinha boba externamente que na verdade é uma armadura disfarçada: um estilo de se vestir, um corte de cabelo, uma mania, uma forma de agir, uma companhia etc. Analise-se bem e verá o que são.
Mas, e as feridas? Como posso tornar a expô-las se foi exatamente para protege-las que criei a armadura? Volto a ser a criança assustada? Volto a ser o/a derrotado/a? Volto a ser o/a rejeitado/a? É doloroso, mas só é possível curar as feridas antigas, mexendo nelas, fazendo-as sangrar novamente, até que toda a podridão acumulada saia e o sangue novo estanque o corte para que a cicatrização ocorra.
Não é uma visão agradável, é exatamente o que o título desse texto diz. O que é um rei nu? Como reconhecer sua majestade sem seus aparatos reais? Alguém consegue reconhecer um rei sem coroa, manto e cetro? Nu ele é só mais um. Pior, nu ele é mais miserável que o bobo da corte, que ao menos tem suas próprias vestes. Entretanto, acredito que um rei nu possa ser reconhecido como rei pelo seu porte, a nobreza dos seus atos podem entregar sua identidade mesmo que esteja nu. Uma Joana D’Arc saberia vê-lo.
Então não tenha medo de remover todas essas tralhas que você acumulou ao longo dos anos, elas não fazem parte de você. Suas cicatrizes são sua história, não tem como se livrar delas. Tudo aquilo aconteceu de verdade e não tem como mudar mais isso, mas você não precisa temer que te machuquem hoje, você pode muito bem deixar que cicatrizem. Só não pode deixar essa armadura abafar as feridas e mantê-las abertas para sempre. E você só terá paz e será feliz de verdade quando tiver coragem para passar por esse processo.
Um último conselho: não tenha medo de pedir a ajuda de seus pais, um professor, um amigo (mais bem instruído que você, obviamente), um sacerdote etc. Tentar passar por isso sozinho é uma bobeira maior ainda. E além dessa pessoa de sua confiança, indico-te alguém que com certeza vai te ajudar de uma forma única: alguém com vasta experiência em curar feridas pútridas, alguém que entende tudo sobre corações magoados, alguém que sentiu na pele o que é expor todas suas feridas… um rei nu, no alto de uma cruz.
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