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O Sino de Crasso

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 28 de dez. de 2023
  • 5 min de leitura

Certa vez, em uma das muitas escolas que passei nesses poucos anos de professor, enquanto eu passava vistando as tarefas de casa – pois acredito que o que é ensinado em sala de aula só é aprendido de fato se reforçado em casa –, um aluno me entregou umas folhas de fichário soltas. Eu notei que algo estava errado, pois já tinha visto aquelas folhas. Então utilizei de minha memória fotográfica para lembrar em que fichários pertenciam aqueles escritos e, indo até o verdadeiro dono, descobri toda a farsa. Acontece que um aluno não fizera o dever e decidiu utilizar a tarefa do colega para não ser punido por sua falha.


O tempo passou e vi um sujeito negando veemente que não tinha batido no carro de trás, sendo que o impacto era mais que óbvio a qualquer transeunte. Por que o brasileiro se nega a arcar com sua responsabilidade? É um problema só do Brasil ou da raça humana como um todo?


Eu também já fui aluno e deixei de fazer tarefas, mas uma vez em específico deixei de fazer uma tarefa de língua portuguesa que me marcou pelo resto da vida.


Eu era aluno do ensino médio e já tinha aprendido nas aulas de filosofia o que Aristóteles entendia como causa e efeito, então estava mais do que avisado de que toda reação tinha suas respectivas consequências. Também tinha aprendido nas aulas de Sociologia que a liberdade não era simplesmente fazer o que eu quisesse, portanto não poderia sair pelado na rua sem ser preso por atentado ao pudor. Anos depois, entenderia ainda melhor que a liberdade é algo bem mais complexo, entenderia com os humanistas e os lógicos que minha liberdade estava limitada às minhas possibilidades; depois aprenderia com os filósofos cristãos o tal do livre arbítrio que é a habilidade de escolher o bem por conta própria e, por fim, descobriria na propedêutica jurídica que minha liberdade se limita até onde vai a do outro.


Um dia eu não fiz a tarefa de Língua Portuguesa e o professor passou entre as carteiras vistando um a um. Não lembro se apenas dois ou mais deixaram de fazer, mas sei que eu e mais um colega não fizemos. Para proteger a identidade desse colega, vou chama-lo de Crasso, em referência ao general romano cujo erro militar estratégico se tornou tão famoso. Lembro que o professor chegou até mim e perguntou pela tarefa, e eu não tinha feito, então apenas disse “Não fiz!” e ele se retirou. Eu sabia que ele poderia contar tudo a direção e me punir, também sabia que ele não me daria a nota de participação referente aquele visto, mas Inês já estava morta, então apenas respondi “Não fiz!”.


O professor continuou indo de mesa em mesa até chegar em Crasso, que também não fizera a tarefa. Crasso começou a contar que tinha ficado no salão de estudos da escola, fazendo as tarefas, mas o sino da aula tocara e ele não teve tempo útil de completar a empreitada portuguesa. Não esqueço aquelas palavras que, depois, tornaram-se motivo de chacota entre os colegas “É que o sino tocou...”.


Não sei o que houve naquela aula, mas o sino tornou a tocar e fomos ao intervalo, eu fui parado pelo vice-diretor que me parabenizou por ter assumido minha falha sem rodeios. O professor de português tinha feito um discurso sobre isso.


Naquele dia eu aprendi sobre a liberdade. O professor comparou a diferença entre Crasso e eu. Ele disse que um homem é responsável pelas suas ações, que pode cometer erros, mas que deve estar disposto a enfrentar todos eles. Eu estava errado por não ter feito a tarefa, mas tinha aceitado todas as consequências dessa minha falta. Já Crasso não queria que as mesmas caíssem sobre ele, optou então por justificar-se, isto é, tornar-se justo, indigno de represálias, erro crasso.


Eu, então, entendi o que é a responsabilidade e também passei a lamentar pelo Brasil. Explico um de cada vez. A responsabilidade é a condição sine qua non para a liberdade. Há uma falsa ideia de que a liberdade é fazer o que se bem entender. Ora, esse é sem dúvidas mais um erro crasso. Não ser limitado é impossível, somos o tempo todo limitados pela nossa psique, pela cultura vigente, pelas leis da física. A liberdade é uma compreensão do que se faz e do que se ganha fazendo-o. Um homem livre sabe as consequências dos seus atos e está disposto a arcar com eles.


O professor me elogiou por ter abraçado toda a culpa da minha falha, não querer passar por justo, mas simplesmente ter admitido meu erro. Não fiz a tarefa, mas a aprendi a lição.

Já a Crasso, o professor repreendeu por buscar se esquivar daquilo que lhe é devido, sua punição por sua falha. Ora, não há nada mais justo em punir quem se falha, é uma questão de justiça para com os que não falharam. Não punir o erro o iguala ao acerto. Se não há motivo para temer os efeitos do vício, então a virtude é desonrada.


E assim começa meu lamento pelo Brasil. Muito se diz em impunidade, mas a verdade é que é muito perceptível o quanto o brasileiro – não sei se lá fora os outros também o fazem, falo do que vejo no meu dia-a-dia – busca fugir de qualquer fruto nocivo de suas misérias, enquanto não se indispõe de maneira nenhuma em galgar o belo fruto que suas ações não produziram. Trata-se de uma falha de caráter crônica em uma sociedade como um todo.


O aluno que não faz a tarefa e pega a do colega, ou que copia as respostas de qualquer maneira em seu caderno sem esforço nenhum em aprender a lição; o marido que se deita com outra mulher e pretende manter o casamento com a esposa traída; o político ou o ladrão que roubam dinheiro, mas não querem se ver com a justiça; o promíscuo que deseja manter as aparências ou que não quer a saúde abalada por sua promiscuidade. São muitos os exemplos de pessoas que fogem dos frutos de suas ações.


Ora, Aristóteles entende a Justiça como a virtude que dá a cada um aquilo que lhe é devido. Nada mais certo, então em entregar a cada árvore seu fruto. Aí está a verdadeira liberdade, em plantar a laranjeira esperando laranjas e a mamoneira esperando mamonas. O que Crasso, o motorista que alega não ter batido e o aluno das folhas de fichário não entenderam é que admitir os seus erros não irá os livrar da culpa, mas vai fazer com que suas ações se tornem mais livres e, seus âmagos, mais honestos.


Eu ainda espero encontrar muita gente que fuja de todas as consequências negativas de seus atos, mas acredito que encontrarei um ou outro por aí que não terão medo em admitir suas culpas e, ao ver essa virtude, ficarei satisfeito por ver que ainda há esperanças. Até lá, vou usar o exemplo de Crasso para me manter na linha e para orientar meus alunos no caminho da liberdade. As consequências disso são evidentes, homens e mulheres melhores, mas deixemos isso para quando começar a aula, para quando tocar o sino.


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