Problemas da EJA, problemas da sociedade
- Carlos Neiva
- 17 de nov. de 2021
- 7 min de leitura
A educação para jovens e adultos como espelho do mundo moderno

Durante um estágio realizado no ano de 2014 em uma escola da educação de jovens e adultos no período noturno, percebi que havia muitas adversidades relativas a essa educação. Ao tentar diagnosticar a causa, percebi que muitos dos problemas vistos e vivenciados eram, na verdade, problemas da sociedade como um todo e não apenas dessa pequena parcela do ambiente escolar.
Nesse texto, serão trabalhados os principais fatores negativos que ocorrem na EJA, ilustrando-os com breves relatos vivenciados e/ou testemunhados, e assim, será tratado a partir disso as vicissitudes da sociedade contemporânea que são espelhadas nas ações na educação para alunos.
Por se tratar de um texto de denúncia da sociedade por meio sistema EJA, não se faz necessária a identificação da escola onde foi realizado o estágio e de maiores detalhes relacionados à mesma. Pois os infortúnios citados não são apenas desta, mas de todas as escolas brasileiras com o sistema de educação EJA ou, como se pretende provar, de toda sociedade contemporânea.
Para o desenvolvimento desse trabalho, fez-se necessário uma seleção de relatos de vivências e fatos durante o estágio e a busca de explicações para tais problemas. Explicações essas que foram encontradas na sociedade por autores como Alberto Carlos Almeida, Richard Sennet, Zygmunt Bauman e outros. Depois de organizados conforme a semelhança para uma melhor compreensão, os relatos foram relacionados com explicações sobre suas causas, mediante a bibliografia escolhida a partir do trato com a problemática.
Um dos grandes problemas da educação no mundo moderno é a mudança do aluno da posição de eromenos para um cliente. Essa mudança faz com que o aluno não seja mais um construtor do conhecimento junto do professor, mas um cliente que deve ser muito bem tratado. Como diz a máxima, “o cliente tem sempre razão”, pois seja por meio da mensalidade ou dos impostos, o aluno é quem paga o salário do professor. Sendo assim, o “comprador” exige que a mercadoria lhe seja dada facilmente, e o conhecimento deixa de ser uma construção professor-aluno e passa a ser uma espécie de mercadoria que deve ser vendida. “Os laços e parcerias são vistos, em outras palavras, como coisas a serem consumidas, não produzidas”. (BAUMAN, 2008, p. 199).
Com essa inversão de papéis o aluno-cliente agora não participa da construção do conhecimento e recebê-lo sem esforço faz com que ele menospreze por completo aquela ciência, pois ela é apenas um objeto de consumo, um dos muitos “itens” disponíveis na prateleira da escola. E como o aluno que declarou só prestar atenção nas aulas de português porque a matéria lhe interessava, ao contrário de química, em que ele achava muito chato e preferia nem se dar o trabalho de copiar a matéria em seu caderno.
Essa visão escolar onde o saber é uma mercadoria (em alguns casos, descartável) não é diferente do que acontece no resto do mundo, onde tudo se transforma em objeto de consumo, como alerta o filósofo Zygmunt Bauman, “... homens e mulheres são treinados (aprender pelo modo difícil) a perceber o mundo como um contêiner cheio de objetos descartáveis; o mundo inteiro, inclusive outros seres humanos”. (2008, p. 198). E se tudo é mercadoria e o aluno é o cliente, ele vai exigir seus direitos não mais por meio do diálogo, mas por meio de um verdadeiro direito de defesa do consumidor, colocando até mesmo a coordenação na terrível situação de ter de bancar o PROCON.
Essa situação se agrava ainda mais na EJA, pois os estudantes são consumidores com mais experiência (ou, para seguir a declaração de Bauman, são mais treinados). Esses alunos, por serem conhecedores dos seus direitos (quando ironicamente se esquecem de seus deveres) e já possuírem a personalidade formada são os que se rebelarão ao se sentir o mínimo possível ameaçados, causando uma verdadeira ação judicial na escola. Essa “... era de prerrogativas de direito não procura caráter, que exige obrigação, mas identidade que requer direitos”. (FOLEY, 2011, p. 84). Algo assim foi visto durante o estágio, quando uma aluna ameaçou processar o professor por não ter tirado a nota que queria. Também é Bauman que irá explicar esse fator, pois “No mundo líquido moderno, a solidez das coisas, assim como a solidez das relações humanas, vem sendo interpretadas como ameaça”. (2011, p. 112).
Se as relações humanas estão se liquefazendo por serem vistas como ameaça, o que dizer da relação professor-aluno. As aulas se tornaram meras transações de saber que são finalizadas ao bater do sino.
Quanto ao interesse dos alunos, e relevante observar um total descaso dos alunos para com as matérias que não parecem ter um objetivo pratico em suas vidas. Todo professor já deve ter ouvido questionamentos como "Quando eu vou usar isso na minha vida?". Esses questionamentos demonstram como os alunos não estão interessados em aprender para obter o conhecimento do mundo e de si próprios, as desejam apenas aquilo que implicarão diretamente em suas rotinas. O conhecimento se tornou uma mera ferramenta que deve ser utilizada apenas em um fim específico.
Outro problema relacionado ao utilitarismo científico e a mecanização do estudo apenas como forma de conseguir uma boa nota no vestibular. Os alunos, preocupados em ir para uma universidade apenas para cumprir mais uma meta social (pois lá manterão a mesma postura), acreditam que a educação básica e apenas uma preparação para o terrível ENEM ou similares. Sendo assim, a aplicação de determinado conteúdo só se justifica caso venha a ser cobrado nos exames. Uma aluna certa vez se manifestou dizendo que não queria estudar aquele gênero textual que estava sendo ensinado, mas que lhe ensinassem a fazer um modelo de redação do ENEM, ao ser promete aquilo seria providenciado, ela voltou a sua carteira e dormiu, pois aquele conteúdo "não servia para nada".
Esse utilitarismo ainda se faz pior na EJA, pois ali os alunos já sabem o que vão usar e o que será "inútil" para seu dia-a-dia. Certa vez, um aluno perguntou por que deveria estudar aquele vocabulário de inglês se ele era pedreiro e não utilizaria aquilo para trabalhar. De fato, numa escola voltada para trabalhadores, faz muito mais difícil essa luta contra utilitarismo.
O mundo globalizado é um mundo onde tudo está ao alcance de todos. Por meio do avanço tecnológico, pode-se fazer compras a distância e conseguir aquilo que desejava sem sair de casa, tudo isso com um simples clique. “A grade conquista de nossa era é fazer a satisfação parecer fácil”. (FOLEY, 2011, p. 67). Com o conhecimento não poderia ser diferente, apenas dos seus celulares, os alunos possuem o poder de informação do mundo todo. E se o conhecimento é descartável, combina perfeitamente com o excesso dele, já que o aluno o sacará de seu celular e depois de utilizá-lo nessa determinada situação o apagará da memória.
Essa facilidade em obter conhecimento leva o aluno ao total desinteresse, esse desinteresse dialoga com sua liberdade. O homem moderno não avalia as consequências de suas ações, pois tudo que importa é o aqui e o agora. Como exemplo desse caso, lembro-me do aluno que preferiu entregar as provas (de múltipla escolha) em branco do que se preocupar com uma futura prova de recuperação.
A falta de receio das consequências esta relacionada ao prazer instantâneo que o homem moderno, e consumista, busca com afinco. “Na ausência da segurança de longo prazo, a ‘satisfação instantânea’ parece uma estratégia sedutoramente razoável”. (BAUMAN, 2008, p. 197). O aluno busca então qualquer coisa que lhe de prazer sem pesar as consequências, pois o simples gozo e o que importa.
Desejoso de finalizar os estudos, apenas por finalizá-los, o aluno necessita que isso lhe seja dado o quanto antes. Se estudar três anos no ensino médio parece muito, ele não pensará duas vezes antes de se transferir para a EJA, onde ele fará isso na metade do tempo. E se isso ainda for muito, ele recorrerá ao ENEM, para eliminar o ensino médio o quanto antes. Uma aluna declarou que ficara um tempo sem estudar apenas para entrar para a EJA, enquanto outra aluna aconselhava sua amiga dizendo “Não seja boba, faça o EJA que é mais rápido e estuda menos”. Uma terceira aluna me encarou dizendo “Entre assistir essa aula sua e fazer o ENEM, eu prefiro o ENEM”.
Como o conhecimento é visto como apenas um item à venda, poderiam os alunos adquiri-lo onde bem entenderem, pois se o conhecimento é só um item de uso imediato e eficaz, não precisa ser de qualidade, apenas instantâneo. Cabe aqui a comparação gastronômica da educação. Antes era necessário um preparo, testes, temperos e horas no fogo esperando para enfim deliciar um prato saboroso e merecido. Hoje não há tanto tempo disponível, então se contentam com uma preparação rápida que é devorada tão veloz quanto. Criou-se uma educação fast-food, que deve ser abocanhada o mais depressa possível sem uma preocupação com seus benefícios na vida do “consumidor”.
O estágio realizado na EJA foi de grande aprendizado porque proporcionou não apenas uma visão da situação da educação, mas da sociedade em si. Os comportamentos dos alunos espelham os padrões da sociedade. E a sociedade caminha para uma terrível realidade onde cada um pensará apenas no seu próprio bem estar. Mas ainda é possível contornar essa situação, basta que cada pessoa busque mudar a si mesma. “A manutenção de si é uma atividade mutável”. (SENNETT, 2012, p. 167). Porém, é necessário buscar estar sempre atento aos outros e não deixar se contaminar pelo espírito do consumismo.
Quanto à educação no Brasil, é necessário que o povo faça a diferença, elegendo bons candidatos. “A grande segmentação que divide o país são a renda e a escolaridade”. (ALMEIDA, 2007, p. 183). E o atual governo (como os antigos), parecem não se interessar em acabar com as diferenças de fato, mas usar isso em benefício próprio.
Garantir uma boa educação no Brasil devia ser a principal meta do governo (junto com a saúde e a segurança), mas essa área tem o mínimo de atenção possível, já que, como denuncia Alberto Carlos Almeida, “Há coisas no Brasil que não dão voto, e a educação é uma delas”. (2012 p. 176).
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2007.
ALMEIDA, Alberto Carlos. Quem disse que não tem discussão?. Rio de Janeiro: Record, 2012.
BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
FOLEY, Michael. A era da loucura: como o mundo moderno tornou a felicidade uma meta (quase) impossível. São Paulo: Alaúde Editorial, 2011.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: o desaparecimento das virtudes com o novo capitalismo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012.
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