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Relações tóxicas?

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 29 de jul. de 2019
  • 7 min de leitura

A sociedade pós-moderna quebra tabus e faz desconstruções. A cada momento surge um novo assunto que precisa ser abordado e problematizado e, dentre eles, hoje se fala de relacionamentos tóxicos.


Como todo assunto problematizado, essa questão dos relacionamentos tóxicos tem bastante importância, pois busca retirar o peso que constrange milhares de oprimidos. Quantas pessoas não vivem uma relação tóxica da qual não conseguem se libertar? Quantas pessoas viveram presas em um relacionamento que deveria ser um vínculo afetivo e acabaram presas em chantagens psicológicas?


Para quem não acompanha a dinâmica pós-moderna, pode-se explicar um relacionamento tóxico da seguinte forma: sabe aquele namorado ciumento que não deixa a sua parceira ter amigos, que a trata de forma possessiva e intervém na forma dela se vestir, se comportar, se expressar? Esse é um caso de relacionamento tóxico.


Na verdade, o conceito de relacionamento tóxico surgiu dentro do discurso feminista de libertação, protagonismo e emponderamento feminino, buscando libertar as mulheres que viviam presas sobre o julgo machista intoxicante. Entretanto, na pós-modernidade, os conceitos são elásticos. Assim, o conceito de relacionamento tóxico também pode ser atribuído ao sentido contrário (homens referindo-se a mulheres) e até mesmo para tratar qualquer relacionamento: a relação pai e filho pode ser tóxica, a relação professor e aluno pode ser tóxica, a relação ídolo e fã pode ser tóxica, até mesmo a relação entre amigos pode ser tóxica.


Mas as relações são realmente algo complicado e desafiador, aliás, nem sempre são algo prazeroso.

No caso de um namoro, por exemplo, um namoro não pode ser algo sufocante. O ciúme é prova cabal de que não há amor, mas um domínio sobre o outro e uma desconfiança. Além disso, relacionamentos amorosos que privam as amizades são catastróficos. O homem precisa dos amigos do futebol, a mulher precisa das amigas do salão de beleza. Obrigar a pessoa a ter apenas você é sufocante, sobretudo porque homens e mulheres tem universos de interesses diferentes. E não preciso nem falar sobre a completa poda da personalidade alheia em prol do egocentrismo do sujeito, querendo um(a) parceiro(a) a sua imagem e semelhança.


Apesar das relações realmente terem um quê de tóxico, este não é em um nível venenoso, como colocado acima, mas com um nível modificante. Em grego, há uma única palavra para remédio e veneno: phármakon (φάρμακον). Os gregos usavam uma única palavra para se referir a essas duas substâncias, pois as viam como uma só. Um remédio em excesso poderia fazer mal e uma quantidade mínima de veneno era um soro imunológico. Remédio e veneno são a mesma coisa, é a forma como você aplica que gera vida ou morte.


Se as relações são tóxicas, não precisam ser evitadas pelo seu veneno, mas talvez apenas a forma como se aplica pode ser alterada, passando a ser algo benigno. O problema das ralações não são as relações propriamente ditas, mas a forma venenosa como vem sendo aplicadas. Basta mudar a dosagem e se terá algo extremamente benéfico e terapêutico.


O problema das relações é, em sua chave, o ego. As pessoas em geral são mesquinhas, mas nunca houve tanto egoísmo como na era pós-moderna. As pessoas vivem para si próprias e colocam as relações ao seu serviço. O que é pior: há autores e influencers de outros tipos que pregam esse veneno como o melhor dos remédios. É comum ouvir slogans altamente sugestivos como “Pense mais em você” ou “É a sua felicidade que está em jogo” ou “Vá em busca dos seus sonhos, não deixe ninguém ficar no seu caminho” ou ainda “O que importa é o que você quer”. Esses enunciados, levados a um monge budista, a um samurai, a um guru hindu, a um padre do deserto, a um beduíno islã, a um sábio chinês, a um religioso medieval ou a um filósofo ateniense soaria como um disparate absurdo. Não se vive para si, o “eu” deve ser abandonado. Se vive para os outros.


O homem que vive em função de si mesmo, cai no erro de idolatrar o próprio ego, tornando-se assim, alguém cruel. O homem deve aniquilar o próprio ego e viver em função dos demais. O homem deve, portanto, ter sua existência permeada pelo amor.


O problema dos relacionamentos tóxicos é que eles são relações sociais (inevitáveis, pois o homem é um ser social) de pessoas que vivem em função do seu ego. Essas pessoas, tendo apenas olhos para si e suas necessidades altamente narcísicas, não são capazes de ver cada pessoa como algo único e irrepetível, portador de uma dignidade, mas, ao contrário, veem as demais pessoas como objetos de suas necessidades e caprichos. Assim, os pais são apenas um arrimo financeiro e um bem estar doméstico, a namorada é um objeto de saciamento afetivo e de prazer sexual, o amigo é um objeto de tarefas úteis e os filhos são um projeto de autorrealização narcisista, uma tentativa de realizar os sonhos frustrados.


É incrível como os mitos tem cosias a nos ensinar até hoje. Contam os gregos que havia um jovem chamado Narciso, filho do deus menor Cefiso e da ninfa Liríope, cuja beleza era tamanha que várias mulheres e até mesmos homens o desejavam ardentemente. Por ser extremamente encantador, o rapaz era um arrogante que via seus muitos amantes como pessoas inferiores. Ninguém conseguia resistir aos encantos do formoso jovem, nem mesmo as ninfas, dentre as quais, Eco, a ninfa castigada por Hera a repetir tudo o que os outros dizem. Narciso, um dia, reclinou-se em um rio para beber água, mas viu seu reflexo nas águas e ficou apaixonado por si mesmo, não conseguindo parar de contemplá-lo até definhar na margem do rio. Afrodite, deusa da beleza, transformou seu corpo na flor que hoje leva seu nome. Quanto ao jovem, está no submundo admirando seu reflexo no rio Estige.


O problema das relações no mundo pós-moderno, é que o narcisismo tomou conta de todos. Todos foram ensinados a se considerarem o mais belo dos semideuses. Uma resposta a baixa autoestima de uma sociedade pós-guerra, com um mercado competitivo e um esvaziamento espiritual. O fato é que todos se apegam a uma afirmação do ego e contemplam a caricatura que fazem de si mesmos, não tendo tempo para os outros. O desconhecimento de si, que leva a veneração do “eu”, configura-se, como o processo reverso do que os antigos viam como busca pela sabedoria e pela maturidade. O resultado é o desprezo que gera relações tóxicas como as de Narciso e Eco, como as de Narciso e Amínias (jovem que se matou por não ter o amor de semideus).


Quando há ciúmes em uma relação, o parceiro está vendo suas seguranças no rio, não tendo tempo para ver a confiança do outro; quando há ordens de como o outro deve se portar, o sujeito está vendo seu reflexo encantador e quer que o outro faça uma réplica; quando há um controle das relações alheias, é porque se busca que o outro definhe contigo na beira do rio a contemplar seu reflexo.


A solução para essas relações é o amor. O amor não é um sentimento juvenil tolo que aquece o peito, é uma determinação a doar-se ao outro. Só quem ama pode fazer da farmacológica relação social algo benigno, algo terapêutico. É o caso do amigo que ajuda o outro a crescer, dos pais que dão uma educação sólida, dos filhos que amparam os progenitores na velhice, dos namorados que se ajudam em seus projetos.


Uma limitação da língua portuguesa, é que temos uma única palavra para descrever o amor, quando os gregos têm três (C. S. Lewis chega a falar de quatro, mas o primeiro nível é mera afeição, não amor propriamente dito). Existe o amor ágape, que Santo Agostinho trata como caritas. É um amor de doação total, imitando o exemplo de Cristo, doando-se sem reservas. Esse amor é de uma esfera teológica, então não vou entrar em detalhes com ele também. Ficam dois amores: eros e philia.


Philia é o amor de amizade. Aristóteles entrou em detalhes nos livros VIII e IX de sua obra Ética a Nicômaco. É um amor que busca o semelhante por algo que tem em comum, um aproximar-se do outro pelo que ele tem semelhante a si. Não é ver o reflexo de si no outro, mas amar o outro por pontos comuns de contato. C. S. Lewis declarando que a amizade começa com a pergunta “O que? Você também? Pensei que fosse o único!”.


Já o eros é um amor que não busca o semelhante, mas a completude. O amor erótico é uma procura pelo complemento, aquilo que falta em si. Essa busca por completude pode se dar na relação macho-fêmea, mas é mais do que isso, ela se dá também em um nível psicológico, buscando o temperamento oposto, a forma de pensar oposta e o gosto oposto. O eros busca fazer o homem incompleto, alguém completo. Daí que na relação erótica, possa haver modificações que não se notam na mera amizade. O pensador britânico G. K. Chesterton afirmou que “O amigo de um homem gosta dele, mas deixa-o ficar como ele é; a mulher de um homem ama-o, e está sempre a tentar transformá-lo noutro homem”. Seu amigo não vai querer que você mude, pois o amor philia dele quer você como ele, mas sua namorada pode exigir mudanças em você, pois há uma busca pela completude entre vocês, como ying e yang, uma busca pelo equilíbrio.


Por que fazer essa distinção? Porque, como dito, as relações tóxicas surgem como um grito de libertação das mulheres do seu parceiro. Mas se é próprio do amor eros uma completude, ele vai, de fato, provocar mudanças, logo, nãos e deve considerar uma relação tóxica porque ela exige mudanças do ser e no agir.


Enfim, o mundo pós-moderno está cheio de pessoas que não querem entrar em relações que não sejam prazerosas, fazendo isso, não oferecem relações prazerosas para outros. Assim, o futuro da pós-modernidade é ser um bando de pessoas incapazes de se relacionar, que consideram todas as outras pessoas como tóxicas, cada qual fechado no seu mundinho, admirando o próprio reflexo, definhando.

3 則留言


Janaíne Costa Souza
Janaíne Costa Souza
2020年4月12日

Por nada.! Só continue escrevendo, que será um prazer continuar lendo.

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Carlos Neiva
Carlos Neiva
2020年4月11日

Muito obrigado pelo feedback, Janaíne! Fico muito feliz que tenha gostado do que foi exposto. E obrigado pela visita!

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Janaíne Costa Souza
Janaíne Costa Souza
2020年4月10日

Belo texto, ótima perspectiva sobre o assunto. Faz mt sentido atualmente.!

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